domingo, 29 de janeiro de 2017

Nós, a sociedade e as capas vermelhas

Metro. 8 da manhã.

Meio a dormir, deixo-me abanar pela velocidade da carruagem. Entre o semicerrar dos meus olhos, reparo que à minha frente um passageiro me olha fixamente.

Finjo que não vejo. Aliás, durante o dia de hoje, mais gente me olhou de cima a baixo, e sempre com um ar depreciativo. Mais gente me olhará da mesma maneira até regressar a casa.



No mar de preto e cinzento da carruagem, uma mancha vermelha viva sobressai. Sou eu.



Já há algum tempo que queria comprar uma capa vermelha. Não só pelo revivalismo infantil que me faz trazer, como também pela conveniência que uma capa de burel traz nos dias mais gelados e chuvosos. Sem guarda-chuvas ou camisolas de interior extra, a capa por cima de um casaco proporciona tudo aquilo que preciso para a intempérie.

Chega-se à boca do metro onde chove torrencialmente, todos puxam dos guarda-chuva; eu puxo do capuz e sigo a minha vida, ouvindo ao longe o cochichar e o resmungar sobre o tempo, que nunca está de feição.

Tão evoluídos nos dizemos, mas ainda se ouve da boca de velhos e novos que o vermelho, cor tão temerosa, é cor de quem quer provocar, de quem "não se dá ao respeito". E assim nos mantemos, taciturnos, no nosso oceano de cinzento, preto e tristeza, num dia igualmente cinzento, escuro e triste.

Olhando, fixamente e com ar reprovador, todos os que fogem ao comum dos mortais. Todas as capas vermelhas desta vida, que são imorais e reprovadoras da moral e dos bons costumes.

Uma criança enquanto espero, no regresso a casa, toca-me na capa com a mão livre que não está a abraçar a mãe e murmura:

-Capuchinho...

E o Capuchinho sorri de volta.